quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A FÁBULA DE PEDRO - PRIMEIRO CAPÍTULO

Aqui você encontrará um romance nunca publicado. "A fábula de Pedro", escrito para minha esposa quando celebrava seu aniversário. A história narra as descobertas de um jovem pescador que procura conhecer o mundo e acaba encontrando a ele mesmo através de uma série de experiências de vida. A cada semana postarei um novo capítulo. Espero que gostem e comentem sobre a história. Um forte abraço:

Emerson Luiz





O INÍCIO

    Uma vez assisti a uma peça de teatro da qual não lembro o nome. Ao dizer isso, percebo o quanto a nossa memória às vezes pode ser engraçada, e como o nome de coisas que nos marcam tanto podem ser tão facilmente esquecidos. 

    Talvez o que nos marque não seja o nome, mas a coisa em si. Shakespeare já havia dito algo semelhante nas falas de Julieta: “Uma flor deixaria de exalar seu perfume se tivesse outro nome?” O fato é que não lembro o nome da peça, mas lembro que era uma história infantil. O enredo era simples, com um príncipe encantado que salvava uma jovem humilde e perseguida que no final revelava ser o grande amor de sua vida. Mas o que chamou minha atenção foi a presença de um narrador. Era um rapaz alto e magro, com uma voz grave, que surgia para intervenções que o autor julgou necessárias.

Lembro que ao final da peça alguém comentou que foi um erro. “Não se faz uso desse recurso nos dias de hoje”. Pensei que a crítica seria mais relevante se a pessoa que a proferiu tivesse escrito ao menos uma carta em sua vida, mas parece que é sempre mais fácil condenar que elogiar. No entanto, refleti muito sobre a presença do narrador após a crítica da qual discordei.

Pensei que o autor usou o narrador para que sua mensagem não se perdesse na gama quase infinita de interpretações que as crianças poderiam fazer. Ele queria transmitir algo e não desejava que a mensagem se perdesse em meio ao riso e ao espanto do seu público. A maquiagem da bruxa, as canções de rima fácil com seus duns, duns, duns... e o narrador ficou em minha memória. O narrador na verdade era a imagem do autor, o homem que contava a história.

Talvez eu soubesse que um dia também teria de contar uma história que não fosse minha. Não um conto de fadas, pois as feras e bruxas malvadas do mundo real são mais comuns e perigosas, elas não seguem estereótipos.

Tenho o dever de revelar um mistério, mas apenas ao final. A preocupação que a mensagem se perca ao fim da história também me abate, pois às vezes a emoção nubla nossos sentidos e acabamos por dizer o que não pretendíamos ou omitir aquilo que há pouco parecia essencial. Quando as cortinas se abriram só havia o narrador no palco, disso lembro perfeitamente. Com sua voz grave pronunciou o poema de abertura que tentei lembrar mas não consegui. Algumas partes ainda estavam presentes, mas as outras se apagaram entre o vermelho das cortinas e a luz que projetava sua enorme sombra no que seria uma floresta. Se pudesse iniciar a história que devo contar, não no teatro, mas como em um dos belos filmes de Hollywood, iniciaria com uma tela preta. A música começaria a tocar, ainda lenta e baixa, enquanto a tela abria, mostrando grandes serras azuis.

Imagens aéreas mostrariam o topo das serras, e depois iriam focando uma estrada. Nessa seqüência de imagens a música iria ganhando tons mais altos, mas a melodia ainda seria triste. Seguindo a estrada que possuiria apenas dois ou três carros em trânsito, a câmera enfocaria uma casa muito antiga e se aproximaria lentamente.

Dentro da casa, poderíamos percorrer os seus cômodos. Uma pequena sala com poucos móveis: um sofá de dois lugares, uma poltrona, um centro de madeira e um televisor preto e branco. Na parede um retrato amarelado de uma família. Mais a frente, portas fechadas de dois quartos e uma cozinha, tão pequena quanto a sala, com uma mesa de quatro lugares, um refrigerador branco e um fogão já gasto pelo tempo. Sobre a mesa, uma xícara de café e um jornal. A porta que leva ao quintal aberta, e fora da casa, um homem está sentado em sua cadeira de balanço sob a sombra de uma árvore. Em suas mãos se encontram um diário e uma caneta. De onde ele está se pode ver as serras de longe. Então olhando para elas suspira e só depois começa a escrever...


CAPÍTULO UM 
A PRAIA 


Onde um jovem decide ir em busca de um sonho, ocorre uma conversa com um sábio ingênuo e se tenta ouvir o barulho do sol se apagando nas águas do mar. 

O nome do rapaz era Pedro. Naquela manhã ele andava na praia como costumava fazer desde a sua infância quando o fazia na companhia de seu pai. Os anos passaram e ele passou a ter necessidade de caminhar sozinho. Não que amasse menos o seu pai, mas nesses instantes de solidão sentia-se mais próximo dele mesmo. Era o seu minuto com ele, onde revelava sentimentos e fantasias que escondia durante todo o tempo de todos a sua 
volta, e por mais estranho que pudesse parecer, dele também. 

As ondas, sem qualquer força ou agressividade, morriam na areia da praia, acariciando seus pés enquanto caminhava. O vento, ainda frio no início da manhã, trazia o perfume de terras distantes, de um mundo novo a ser desbravado. 

Ele olhava para a imensidão do mar, procurando ver muito além do movimento das águas. Deixava que seus olhos se perdessem no horizonte, em cidades fantásticas repleta de mistérios e segredos. Um mundo de aventuras, um mundo que ele desejava conhecer embora não soubesse como. 

Durante muitas manhãs percorreu aquele caminho, se afastando da aldeia de pescadores onde vivia e indo até onde se localizava as ruínas de um antigo forte, construído pelos invasores estrangeiros que dominaram aquelas terras. Os mais antigos diziam que quando o povo decidiu lutar por sua liberdade, as mulheres, crianças e velhos venceram uma tropa que se dirigia à vila tentando minar a resistência. Pedro gostava da história, mas 
lamentava nunca a ter visto em um livro. Percorreu a trilha até as ruínas e lá ficou. Entre as pedras ainda havia os restos de um antigo canhão. Quando era criança gostava de imaginar que defendia a todos de um ataque pirata. Os piratas naquela época lhe 
pareciam cruéis, pois vinham roubar o seu tesouro. Com o passar do tempo, ele mudou de lugar e se imaginou um pirata, singrando pelos mares em busca de um tesouro maravilhoso. Houve dias em que seu tesouro era composto por pedras preciosas: safiras, diamantes, rubis, turmalinas, e toda a infinidade de brilhantes. Em outros, era um galeão espanhol que havia naufragado cheio de ouro inca. Nesses dias, a sua missão era resgatar o tesouro no fundo do mar, o que era difícil, pois teria de enfrentar monstros desconhecidos. Mas depois de um tempo, ele não era nem defensor da ilha nem pirata, era um dos três filhos de um pescador. O tesouro desapareceu de sua imaginação e o seu coração deixou de se aventurar. 

Foi aí que conheceu a tristeza de pensar em terminar seus dias em uma ilha. Ele amava aquele lugar, conhecia cada centímetro dali como conhecia cada uma das marcas de sua mão. De tanto observar o mundo a sua volta podia saber quando seria um belo dia de sol ou quando uma tempestade se aproximava. Pelo modo como as pessoas andavam podia dizer se estavam tristes ou alegres, pois era uma aldeia pequena, e todos se conheciam. Era um lugar calmo, que qualquer visitante descreveria como paradisíaco, mas 
em seu íntimo Pedro sentia o desejo de ir além, um desejo que a cada dia se tornava maior, algo que o inquietava e o consumia. Das ruínas do forte ele voltou a contemplar o mar. Lembrou que um dia aquele mesmo mar escondeu um tesouro fantástico, e agora, era apenas o símbolo de algo inalcançável, algo que ele queria de uma forma estranha, 
pois era capaz de desejar, mas não conseguia definir o que buscava. Depois  de muito olhar o movimento das ondas, deitou-se na sombra de um coqueiro e adormeceu. 

Num sono profundo, o jovem Pedro estava novamente em um navio. Ele não era um pirata, mas estava feliz. Em seu sonho percorreu o mundo, deslumbrou-se com a beleza das pirâmides, da torre Eiffel. Penetrou no Taj Mahal e caminhou pela imensa muralha da China. Percorreu um mundo que antes era conhecido apenas por livros, e depois disso chorou. Chorou por algo que havia se perdido no caminho. Então acordou com os olhos cheios d’água. 

Já era tarde. Os tons do entardecer já começavam a pintar o céu e as nuvens eram mais espessas, sopradas do oceano para a costa. Bateu a terra da suas vestes e pôs-se a caminhar de volta para casa. No caminho encontrou um menino sentado a observar o pôr-do-sol. Era um menino loiro, a pele branca, mais branca do que de qualquer uma das 
outras crianças da ilha, sempre bronzeadas pela exposição ao sol. Tentou lembrar de quem aquele menino era filho, pois não era bom para uma criança estar tão longe de casa e sozinha naquela hora, mas ficou surpreso ao perceber que não conhecia o menino. 

O vento soprava e fazia os cabelos do menino balançarem como trigo ao vento. Pedro nunca havia pisado em um campo de trigo, mas uma vez vira uma fotografia em um livro, e no texto abaixo lera algo sobre o movimento do vento sobre o trigo, e por isso associou uma coisa a outra.
 _ Menino, o que faz tão longe de casa? 

A criança o olhou com aqueles olhos azuis tão profundos quanto o próprio oceano. 
_ Psiu! Se fizer barulho agora, não poderei ouvir. 
_ Ouvir o quê? – Pedro só podia ouvir o vento soprando e as ondas quebrando-se ao chegarem próximo à praia. 
_ O barulho do sol se apagando quando começar a se pôr dentro do mar! 
Pedro sentiu vontade de rir. O sol se apagando dentro d’água. O sol que estava a milhões e milhões de quilômetros deles! 

_ Desculpe criança, mas o sol não vai se apagar. 
O menino o olhou de novo, dessa vez o azul dos seus olhos pareceu se tornar mais escuro. 

_ Então você se tornou como as outras pessoas grandes. Uma pena, vou ter de ouvir a música que o sol faz quando se apaga sozinho mais uma vez. _ Como? 

_ Foi meu pai que me ensinou a ouvir isso. Ele disse que sempre devemos procurar nos encantar com os milagres ocultos da vida, coisas que a maioria não consegue ver nem ouvir. Meu pai me disse que as pessoas grandes se ocupam de muitas coisas, se entristecem planejando um futuro que talvez nunca chegue e perdem o mais importante. Desejam tanto, mas tem medo de ir à busca dos seus sonhos, e por isso, não conseguem achar os tesouros que a vida esconde para nós. Perdem tempo se preocupando 
com o amanhã e esquecem que viver o hoje já basta. 

“Eu sonho em ser mergulhador. Um dia, vou encontrar um galeão espanhol que naufragou cheio de ouro. Vai ser uma grande aventura! Mas enquanto não sou grande nem forte o bastante, gosto de ouvir o barulho que o sol faz quando toca a água, e a música que vem depois disso”. 

Pedro sentiu vontade de corrigir o menino. De lhe dizer tudo o que seu velho professor certa vez falara. Da distância dos astros, da imensidão dos oceanos e todas as outras coisas que sepultaram seus sonhos de encontrar tesouros. Desejou repetir as palavras do seu pai: “Sonhos não trazem comida para a mesa”. Mas o menino não merecia perder suas esperanças como ele, não enquanto ainda era tão jovem. 

_ Meu pai me disse que todo mundo deve aprender a ouvir o seu coração, continuou o menino, é nele que se encontra a chave para achar tesouros perdidos. 

Pedro decidiu seguir em frente e deixar o menino para trás. Deu alguns passos e lembrou que em breve o sol iria se pôr e seria perigoso para ele voltar sozinho. Quando virou para adverti-lo sentiu o coração se comprimir ao ver que não havia ninguém ali a não ser ele. 

 *** 




Naquela noite Pedro fez uma prece silenciosa. Deitado em sua rede ele pediu a Deus que lhe desse a coragem suficiente para ir em busca do seu sonho. “Não conheço o mundo, mas sei que não irei encontrar a felicidade aqui. Ajuda-me a encontrar meu caminho Senhor!” 

E na manhã seguinte, Pedro comunicou aos pais e irmãos que iria embora da ilha. Sua mãe chorou, o pai tentou lhe incutir bom senso e alguns de seus irmãos o acusaram de ser louco. 

“Louco é quem não percebe que o medo de sofrer é pior que o próprio sofrimento”, pensou. “As vezes precisamos correr riscos para descobrir a liberdade”. E foi assim que o filho de um pescador, um jovem chamado Pedro, decidiu abandonar a aldeia onde nascera para se aventurar na busca um tesouro que ele ainda não conhecia. 



Tarde no mar 

A tarde é de ouro rútilo: esbraseia. 
O horizonte: um cacto purpurino. 
E a vaga esbelta que palpita e ondeia, 
Com uma frágil graça de menino, 


Pousa o manto de arminho na areia 
E lá vai, e lá segue o seu destino! 
E o sol, nas casas brancas que incendeia, 
Desenha mãos sangrentas de assassino! 

Que linda tarde aberta sobre o mar! 
Vai deitando do céu molhos de rosas 
Que Apolo se entretém a 
desfolhar... 


E, sobre mim, em gestos 
palpitantes, 
As tuas mãos morenas, milagrosas, 
São as asas do sol, agonizantes... 



 Florbela Espanca 



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